LEMBRO-ME,
COMO se fosse hoje daquela
manhã em que, para minha surpresa e ao invés do que era normal, o meu Pai me
acordou dizendo-me qualquer coisa como isto: “Levanta-te que há um golpe de estado e vai
ter lá acima...”.
Lembro-me da minha Mãe emocionada ao
telefone com um amigo de família, o espanhol Enrique Ruíz Garcia, que ligava desde Madrid:
“Fueron cuarenta y ocho años Enrique - mi edad, cuarenta y
ocho años, imaginate Enrique...” - a frase com que, uma semana mais
tarde, o mesmo Ruiz Garcia abria o artigo que escrevia, salvo erro, nos
“Cuadernos para el Dialogo” (ou seria na “Triunfo”?), citando “su amiga Maria Virginia”.
Lembro-me daquela serenidade aparente de meu
Pai, sempre metódico, a colocar as balas no seu “Taurus” (“nunca se sabe o que isto pode dar…”) e a distribuir tarefas: “Zé Paulo, avisa os teus colegas para não irem para a escola”;
“Maria
Virginia, vê se temos comida suficiente e para quantos dias...”; “Zézinha, liga
para fulano e para beltrano a avisar...”.
Lembro-me da Graça Carvalho Fernandes e do Jorge
Trigo de Sousa entrarem portas dentro com um pequeno televisor (o primeiro
que alguma vez entrou em nossa casa) e que rapidamente sintonizado no único dos
dois canais de televisão que funcionava naquele dia, permitiu-nos, juntamente
com as emissões de rádio, acompanhar o que se passava em Lisboa.
Lembro-me de, a meio da tarde e aproveitando a
natural confusão do “entra e sai” dos inúmeros amigos de casa, dos
milhentos telefonemas que levavam o meu Pai a estar agarrado ao telefone,
conseguir finalmente escapulir-me e ir ter com o meu amigo Pedro Pimenta. Acho que chegámos a
pintalgar num muro na Avenida de Sintra um “Viva a Liberdade!” ou uma coisa do
género, assim numa espécie de nossa “primeira vez” e que, contada no regresso a
casa, me deu direito a levar um raspanete do meu Pai para quem a situação ainda
estava “muito
confusa” e que o facto de sermos vizinhos do almirante Henrique Tenreiro preocupava - isto "no caso
das coisas darem para o torto".
Lembro-me de, ao fim da tarde, a Carol Quina e o António Silva (juntos até hoje!) aparecerem lá em casa, vindos de
Lisboa, a contar as últimas que, sofregamente, todos “bebemos”. O António que,
ainda há dias, me contava ao telefone desde Paris, que nunca mais esqueceu uma
frase dita pelo meu Pai, já a noite ia longa: “Se os presos não forem todos libertados, eu
não acredito nisto”.
Lembro-me que, daí a umas horas, fomos dos
primeiros a chegar ao cruzamento que dava acesso ao portão da prisão de Caxias,
de onde só arredámos pé muitas horas depois, já a noite ia longa e quando
(lembro-me tão bem...) vimos o sempre elegante Hermínio da Palma Inácio sair à frente de um grupo de presos políticos
finalmente em liberdade.
Lembro-me então de voltarmos a casa, em
Cascais, já no dia 27. Do meu Pai pedir à minha Mãe para lhe fazer “um chá e uma
torrada”, de ir-me deitar e de ter percebido que existem dias que
podem ter muito mais que 24 horas e serem recordados, minuto a minuto, quarenta
anos depois...
Para terminar: já escrevi aqui e já o repeti
mil vezes que o dia 25 de Abril foi o dia mais feliz da minha vida até hoje.
Que me desculpem os meus quatro filhos, cujos nascimentos obviamente são datas
que nunca esquecerei, mas aquele dia do ano de 1974 teve um significado único e
incomparável para mim - um miúdo à beira de fazer 13 anos e que sempre
convivera num ambiente de clara e profunda oposição ao regime que durava há 48
anos. Um miúdo que, quarenta anos depois, lembra-se tantas, mas tantas vezes
daquela frase dita ao telefone pela sua Mãe - às primeiras horas do dia 25 de
Abril: “Fueron cuarenta y ocho años Enrique - mi edad, cuarenta y ocho años, imaginate Enrique…”.
1 comentário:
Não sei porquê, mas lembro-me, mais ou menos da mesma história...
Abraço, Simeão
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