VRRUM, VRRUM… o Audi R8 da vedette acelera em seco no início da inclinada rampa empedrada que liga a praça do Império ao pátio dos Bichos. Popinha no ar, óculos maiores que a cara, brinquinho na orelha, o homenageado lá vai fazendo subir o bólide lentamente entre os flashes dos inúmeros fotógrafos que, do circunspecto "Expresso" à espalhafatosa "Vip" do sô Jacques, se acotovelam para captar um momento mais íntimo do casalinho que sorri e acena sorrridente.
- "Ó filha, tu lá na tua terra podes ser muito conhecida, mas nunca foste condecorada lá pelo Puto, Putin ou lá como se chama o gajo", soltou entre dentes, para o lado, o condutor mascando sonoramente a chewing gum que o ex-cunhado lhe tinha presurosamente dado ao sair de casa.
-"Oна занимает много? Разве что в этом месяце, контракт, у вас остается только 3 Хорреев. Как только Вы знаете, у вас есть, чтобы начать платить сверхурочные …"
- "É pá, não percebo patavina dessa língua de trapos, vê lá se começas a falar protuguês, senão vais de vela. Olha que candidatas boazonas não faltam, óbiste pá?! Raio da mulher, ó caraças…"
De repente, um estrondo faz abanar o carro. Tinha sido um paralelepípedo mais saliente da ladeira que batera na parte debaixo e parecia ter arrancado carter e tudo à volta: "Pôrra, que isto nem lá na Madeira!", exclamou o rapaz da pôpinha, travando de supetão o bólide.
Da van que seguia atrás, saltou lesta uma rechonchuda mas ágil personagem. Lesta que é como quem diz, porque tanto a D. Dolores como a Ronalda, lançaram uns quantos impropérios pelas pisadelas que foram alvo. Mas o homem pouco se importou. O que movia o cabo Andrade - ainda que em licença sem vencimento, mas sempre em serviço "pela Lei e pela Grei" - era "tomar conta da ocorrência", "avaliar os prejuízos" e "apurar as responsabilidades". Foi exactamente isso que ele disse ao Cris ("para mim é que se fosse um filho!", aproveitou para confessar a uma jovem jornalista da "Flash" que lhe estendia o microfone no meio da confusão) que, já fora do carro, mãos nas ancas, assistia desolado e irritado ao autêntico lençol de óleo que escoria pela rampa abaixo: "E agora Andrade? E agora? Quem é que paga esta merda?!", vociferava furioso rodeado de fotógrafos e de microfones de frenéticos repórteres. O cabo Andrade cofiava o bigode, alargava o nó da gravata, abria o botão de cima da camisa das riscas largueironas, limpava com um lenço sebento o suor que lhe escorria da face e com um ar inteligente, repetia sem parar: "Está aqui um lindo serviço, está aqui aqui um lindo serviço, sim senhora…".
Descendo a rampa e irrompendo a custo perante a horda de repórteres, uma pequena criatura aproximou-se da vedette. O ex-cunhado, que entretanto também descera da van e acorrera ao local do incidente, sempre cioso da preservação da intimidade do Cris deu-lhe um "chega para lá" que estatelou o pequenote ao comprido na rampa, despachando-o em dois tempos: "Ó miúdo, vai mas é pedir autógrafos à tua tia, não chateies!". Sentado no chão, compondo o fatinho e esbracejando, a criatura insistia: "Mas eu sou o Nunes, eu sou o Nunes, eu não quero autógrafos, sou o braço-direito do senhor presidente, vim buscá-lo para levá-lo para cima…". Mas ninguém o o ouvia, pior... o pobre Nunes era autenticamente esmagado pela multidão dos repórteres que pisando-o, se colocavam a postos para fotografar a vedeta que, deixando o cabo Andrade a tomar conta da ocorrência, subia, de mão dada com a namorada, mãe, filho (coberto com um capuz do Ku-Klux-Kan), irmã Ronalda, ex-cunhado e uns quantos figurantes familiares, a rampa que o levava à porta do palácio - um cliché, aliás já visto anos atrás por aquelas bandas...
À porta do palácio aguardava-o um esfuziante Alberto João que, de copo de poncha numa mão e bandeirinha da Madeira na outra, não hesitava, enquanto se lançava num abraço furioso ao seu conterrâneo, em lançar um olhar lascivo para a D. Dolores que, momentaneamente livre do cabo Andrade e mais parecendo a versão feminina do boneco Michelin manietada numa tigresse que lhe realçava os muitos "contornos", lhe correspondia corada.
Dentro do palácio, os funcionários da Presidência entreolhavam-se boquiabertos. Nem os mais velhos, que assitiram aos mais surrealistas episódios nos loucos anos quentes de 74 e 75, alguma vez tinham visto entrar uma trupe daquelas por ali dentro: à frente a mítica vedette, de fato lustroso e popinha estilo quilha de barco ao revés; ao seu lado um "avião" (parece que "Mig"...) com umas vestes de tão ousadas que certamente iriam deixar a D. Maria à beira da apoplexia; atrás um afogueado Alberto João fazendo uns "avanços" sobre uma D. Dolores que só repetia incessantemente "olhe o cabo Andrade, presidente, olhe o cabo Andrade que ainda aparece aí..."; a seguir a maninha trauteando em espanhol o hino nacional ("Contra los cañones, marchemos, marchemos…") e de mãozinha suada e gorda dada com o sobrinho que, ainda de capuz para não ser fotografado, não parava de dar piparotes em tudo o que era móvel e bibelot dos salões presidenciais; e mais atrás o ex-cunhado liderando o grupo constituído pelos tios, primos direitos e esquerdos.
Enfim, lá chegaram ao salão dos Embaixadores, onde Aníbal António e Maria, acompanhados de parte do seu séquito, já com o pobre Nunes incorporado (ainda que de braço ao peito e cabeça enfaixada) aguardavam do outro lado formais e erectos. O momento era solene. O chefe de protocolo do Estado, às recuas e sem deixar de fazer sucessivas vénias ao Venerando Chefe de Estado, cruzava o recinto para conduzir o homenageado ao lugar que lhe competia na cerimónia e o secretário-geral da Presidência da República preparava-se para, livro em punho, dar voz à decisão presidencial em distinguir a vedette com o grau de Grande-Oficial da Ordem de Infante D. Henrique pelos "serviços relevantes prestados a Portugal, no País e no estrangeiro, etc. e tal". Do outro lado, os fotógrafos tomavam os seus lugares; a criancinha começava a dar alguns sinais de impaciência e a envolver-se num surdo combate de beliscões e caneladas com a tia Ronalda que teimava em impedi-lo de tirar o capuz; atrás de uma coluna, Alberto João e Dolores já mutuamente surripiavam uns prazeres um ao outro; e o ex-cunhado piscava cúmplice o olho à vedette que resolvendo mostrar um grande intimidade com o seu anfitrião lançou de um lado do salão para o outro: "Ó Presidente, você continua com bom aspecto, hombre!".
Ainda Aníbal António mal tinha acabado de escutar o tratamento que o homenageado lhe dirigia alto e bom som, eis que vendo o longo cordão de fotógrafos que se estendia ao longo do salão, o "Mig" não resiste e... despindo as poucas vestes que cobriam a sua lingerie, decide, em exclusivo mundial, apresentar as últimas novidades da Victoria Secret! Maria abre os olhos esbugalhado e desfalece nos braços do marido. Este, também tomado pela comoção, tomba nos braços do debilitado Nunes que sem encontrar onde se apoiar estatela-se, pela segunda vez em poucos minutos, desta feita com o casal presidencial em cima. Mas ninguém dá por ela, até mesmo o solícito assessor Vieira e os ajudantes de campo estavam mais interessados nas últimas novidades da casa de Ohio que propriamente nos achaques do casal da Travessa do Possolo. E o "Mig" lá continuava, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, parando, posando, relegando para segundo plano tudo e todos, seu "par" incluído… Mas este apesar de tudo tentava aproveitar o momento e chamar ainda algumas atenções sobre si, repetindo sem cessar às jornalistas que sofregamente lhe bebiam as palavras: "Vêem, vêem, eu não disse? Tem tudo o que eu procuro numa mulher, um corpo excepcional e beleza, não é preciso mais nada".
De repente, as portas do salão dos Embaixadores abriram-se de par em par com estrondo, assustando as dezenas de pessoas que o enchiam por completo. Era o cabo Andrade. Suado, cheio de óleo, já sem casaco, gravata por cima do ombro e com um ar decidido. Com voz tonitruante, daquela que até parece ter pêlos na garganta, deu dois valentes berros, que gerou o mais completo silêncio: "Quem é que manda nesta merda, pôrra?!". Assustado, ainda por debaixo de um casal presidencial ainda semi-inconscientes, o pobre Nunes (já farto de ser o bombo da festa) apontou timidamente para Aníbal António e quase sussurou: "Este…". Aí, o cabo Andrade empertigou-se, compôs a gravata, atravessou a sala e dirigindo-se a um assustado Aníbal e com voz firme, lançou: "Está detido!". Com voz de falsete e profundo acento algarvio, talvez fruto dos nervos, o mandatário ainda arriscou um tímido "porquê". "Por danos no património privado! E acabou-se a conversa, senão ainda levas uma ensinadela". E agarrando-o pelo cachaço, quase que arrastando-o, levou-o pelo salão fora. Ao cruzar-se com o "enteado", piscou-lhe o olho e, baixinho, disse-lhe: "Vês Cris, o assunto está resolvido. Vai ser este gajo que te vai pagar o arranjo no Audi!".