PARA QUEM gosta de memórias e biografias, as de José Luís de Villalonga são certamente das mais apetecíveis: "Memorias no autorizadas" assim se intitulam os 4 volumes que relatam a vida cheia do marquês de Castellvell durante os 87 anos que por aqui andou. Ele foi e fez um pouco de tudo: foi actor, escritor (mais de 24 livros publicados, entre os quais uma biografia do Rei Juan Carlos e um extraordinário "Sable del Caudillo"), jornalista, porta-voz em Paris da Junta Democrática de Espanha, mas acima de tudo o que costuma chamar-se um homem do mundo e com mundo.
No início dos anos 40, o então jovem Villalonga passou pelo Hotel Palácio, no Estoril, a caminho de Londres, onde terminaria a sua viagem de núpcias. Como ele descreve no primeiro volume das suas memórias, o hotel era então uma verdadeira "torre de Babel", dada a infinidade de refugiados que ali residiam, vindos um pouco de toda a parte. Aquilo que o jovem casal Villalonga (José Luís e Pip) esperava ser um pouco mais que uma escala de cinco ou seis dias, tornou-se numa longa espera, dada a demora do consulado britânico em conceder-lhe visto, apesar de ter casado com uma cidadã inglesa. O tempo foi passando, o dinheiro (que já era pouco) acabando e, por indicação telefónica de sua mãe, decidiu contactar um amigo da família de muitos anos - Ricardo Espírito Santo: "Telefona ao Ricardo. Vai vê-lo e conta-lhe da minha parte o que ocorre. Ele resolve a situação", disse-lhe, desde Barcelona, a então marquesa de Catellvell, certa que o amigo de anos acudiria prontamente ao filho.
A partir da página 338 do primeiro volume das suas memórias, Jose Luis Villalonga relata pormenorizadamente o que veio a ocorrer posteriormente:
"(...) Ricardo Espírito Santo, dono do banco do mesmo nome, era um amigo que meus pais frequentavam muito em Biarritz. Consegui o telefone de sua casa graças a Ramon Padilla e consegui falar com o seu secretário particular, a quem, depois de dar-me a conhecer, expliquei que necessitava urgentemente de encontrar-me com don Ricardo. Ao fim de uma hora, o secretário devolveu-me a chamada e transmitiu-me o convite para almoçar no dia seguinte às duas da tarde e casa dos Espírito Santo.
Chegámos ao palacete do banqueiro certo que vamos solucionar o nosso problema (...) Acesos os charutos, Ricardo Espírito Santo propôs-nos que passáramos ao seu escritório, onde poderíamos falar tranquilamente do nosso assunto. Posto rapidamente ao corrente do que nos preocupava e da conversa telefónica com a minha mãe, o banqueiro comentou com um sorriso despreocupado:
- Vocês estão na mesma situação que centenas de pessoas que se sentem presas no Estoril como numa ratoeira. Mas tudo tem solução, para que é que servem os amigos? - com uma caneta de ouro escreveu umas letras numa folha de um bloco e ao estender-me, acrescentou - : Vão amanhã a este endereço e perguntem da minha parte pelo senhor Soares. ele resolverá o vosso problema.(...)
O número da casa a que os dirigimos na manhã seguinte estava a duas portas do Monte de Piedad*, a casa de penhores onde se formava uma fila de mais de uma centena de pessoas. Quando anunciei a uma espécie de porteiro que vínhamos ver o senhor Soares da parte de don Ricardo Espírito Santo, o homem apressou-se a conduzir-nos ao gabinete que procurávamos.
O senhor Soares (...) era um um orondo anão com coroinha de bispo que cada vez que mencionávamos o nome de nosso amigo fazia questão de levantar-se do assento. Após as banalidades do costume, coloquei o anão ao corrente do nosso problema. Escutou-me pacientemente e quando acabei de falar, disse:
- Sendo amigos do senhor Espírito Santo farei o melhor que possa para atendê-los devidamente - Acomodou-se na sua cadeira e, olhando para a minha mulher, murmurou -: Tenho uma grande curiosidade para saber o que me traz a senhora...
Pip e eu olhámo-nos sem compreender.
- Que quer o senhor dizer, senhor Soares?
- Pergunto minha senhora, que me traz? Ouro, platina, prata, talvez diamantes ou outras pedras preciosas? O ouro é o mais fácil de penhorar, sobretudo se está em barras. A platina tem pouca saída, porque é um metal muito duro de trabalhar. E a prata, sobretudo a nossa, não vale grande coisa. No que respeita às pedras, esqueçam as safiras, os rubis e as esmeraldas, a menos que sejam de grande qualidade. Os diamantes... Ah! os diamantes! Se a senhora me traz um bom diamante, então...
Pus-me em pé e gritei:
- Mas quem raio é você?!
O anão levantou-se também assombrado:
- Eu? Marcelo Soares, subdirector adjunto do Monte de Piedad de Lisboa!
Pip e eu olhámo-nos de boca aberta:
- Como? Mas isto é o Monte de Piedad?
- Uma de suas dependências. O senhor Ricardo Espírito Santo mandou-os aqui para que não tivessem que fazer fila frente à porta.
Pip também se pôs de pé, pálida de ira:
- Creio - tratei de intervir - que existiu aqui um mal-entendido. Muito obrigado de todas as maneiras por nos ter atendido.
- Então os senhores não me trazem nada? Nem sequer uma pregadeira?! - queixou-se o senhor Soares - eu estava disposto, já que os senhores são amigos do senhor Espírito Santo a pagar-lhes generosamente...
- O senhor Espírito Santo é um grandíssimo filho da puta! - bradou a minha mulher, reluzindo a sua antiga dialética de coronel polaco - E pode repetir-lhe em francês, em espanhol ou em italiano, até porque eu não sei como se diz em português! Portanto, quando o vir, traduza-lhe da minha parte! (...)
* Montepio