O MEU amigo Zoroastro Sant'Anna é uma figura. Uma grande figura! Baiano, a morar (por enquanto) no Rio de Janeiro, acalenta o sonho (que já esteve mais longe...) de passar para cinema a vida do mítico Lampião, algo de que ele detém os direitos - cedidos pela família. Trabalhámos juntos em Tocantins, na campanha vitoriosa do governador Siqueira Campos em 2010. Eu a criar "comerciais" para TV e ele a dirigi-los. Demo-nos bem - aliás quem não se dá com o grande "Zoro", cujo percurso de vida dava, também, "uma longa", para utilizar a sua expressão bem cinéfila?! Hoje, ao vasculhar o Facebook dei de caras com esta deliciosa estória contada na primeira pessoa por este meu amigo - uma estória que é quase um conto e que relata o encontro que, nos idos de 60, "Zoro" teve com, nada mais nada menos, Janis Joplin na sua Bahía. Intitulado "Me and Janis", não resisto - com a mais que merecida vénia - a transcrevê-la, não sem antes lhe enviar, aqui desde Cascais, um abração do tamanho da distância física que nos separa:
"Janis me ligou no meio
da noite, na Tribuna da Bahia, em Salvador.
Quem é? - perguntei. Is
Janis, Janis Joplin. Rigth, I'm Jesus, and so? É verdade, meu nome é Janis
Joplin. Estou ligando para você por indicação de um músico baiano que conheci
em Ipanema, no Rio, o nome dele é Piti. Quase refeito perguntei o que ela
queria. Disse ela que estava vindo para a Bahia e que precisava de apoio e que
não queria a midia envolvida. Dissera que viria de carona de caminhão.
Marcamos num posto de
gasolina antes da rodoviária, na Avenida Barros Reis. Eu tinha um fusca 68,
azul calcinha. Liguei para o Hotel da Bahia e fiz uma reserva em nome do Mr.
David Newhouse e senhora. David era um australiano, namorado de Janis na época.
Eu tinha 23, Janis 27 e David 29 anos. Quando cheguei no posto de gasolina eles
já estavam lá. Ele imenso, de camiseta regata, malhadão, ela de saia indiana e
blusa de crochê verde, sandálias. Nos beijamos, todos. Seguimos até o Campo
Grande, no Hotel da Bahia. O recepcionista disse que o hotel estava lotado.
Pedi para chamar o gerente, um carequinha empertigado. Expliquei que eu havia
feito uma reserva, pessoalmente e que agora o funcionário disse que estava
lotado. O careca, rei do mundo, numa cidade fim do mundo, disse: "Meu
hotel não hospeda hippies!" Janis, que já estava impaciente, entendeu
quando ele disse a palavra “hippies", bateu a mão no mármore vagabundo da
recepção e gritou: "Seu merda, eu sou Janis Joplin, eu compro esse hotel e
lhe boto na rua!" Pedi calma a ela, ela esperneou, David não estava nem
aí.
As duas mochilas deles
eram imensas, Janis ía na frente e David atrás com os dois volumões. Meu fusca
queimava uma fumaça azul, parecia desenho animado. Seguimos em direção à orla.
Chegamos na Pituba e encontramos o Hotel Universo, que não existe mais. Em
frente ao Jardim dos Namorados. Entramos sem o menor problema. Chegamos no
quarto, deitamos na cama larga, relaxados, David acendeu um charo quilométrico,
fumaça azul, como a do meu fusca. Janis pediu heroína ou pó. Eu não tinha, não
havia nada disso na Bahia em 1970. Eu tinha notícias do que era mas nunca tinha
nem visto. Janis ficou nervosa e inquieta, não dormimos, só David cochilou.
Janis pediu cachaça, saí e trouxe uma garrafa de Jacaré, cachaça da terra
"Jacaré taí ? Positivo", era o slogan. Ela tomou metade da garrafa. O
que tem do outro lado do mar, perguntou Little Lyn, olhando pela janela aberta
para aquela imensidão verde esmeralda do mar da Pituba. A terra dos seus avós,
respondi. Are you jokking? Reclamou ela, que brincadeira é essa? Sou do Texas,
e me deu dois tiros com os dedos engatilhados. Rimos muito, porque respondi que
era cangaceiro e as coisas não ficariam assim, revidei os tiros e corríamos
bêbados do quarto para o banheiro, do banheiro para o quarto. Belo tiroteio.
Baleados e exaustos, expliquei que no do outro lado mar ficava Luanda, em
Angola. Onde vivia a nação negra da qual era roubara a voz. Eu nasci assim, eu
não roubei nada, disse ela tentando arrumar os cabelos revoltos. Eu sei,
tranquilizei. Só queria que você soubesse que é crioula, mais nada. Eu sei,
disse ela, eu sempre soube. Nos abraçamos e ficamos olhando aquela calmaria
turquesa do mar. David peidou.
À noite levei Little Lyn
e David na casa de Luiz Fernando, um amigo, artista plástico que vivia num
casarão na foz direita do fedorento Rio Vermelho que estranhamente não cheirava
nesta noite. Havia manequins de gesso pela sala, envoltos em panos coloridos,
tudo iluminado a luz de velas. No centro, almofadas confortáveis, mais velas e
um toca-discos daqueles que você desmonta e as tampas viram duas caixas de som.
Little Lyn pedira que eu comprasse dois LPs. Um era o “Big Brother and the
Holding Company”, sua ante-penúltima banda, onde rolava tudo que havia de
psicodélico, de drogas às ideias. O outro disco que ela queria ouvir era o
“Kozmic Blues Band”, estranhei que não pedisse o “Cheap Trills”, que ficava no
meio de um e do outro. Foi difícil achar o “Kozmic”, tinha acabado de sair, mas
achei!
Charo rolando pela sala,
cachaça Jacaré aberta no espaço, Little Lyn sentada, balançando o corpo do
ritmo de “Bye, Bye Baby”, “Blindman”, “Call on Me” e outras genialidades. Me
pediu que colocasse o “Kozmic”, ninguém ainda conhecia direito aquele LP. Ela
deu um gole profundo na Jacaré e cantou em cima do disco, em cima da própria
voz, “Summertime”. O mundo deveria ter acabado naquele instante. Depois daquele
momento, nada mais importa, é um encontro definitivo com Deus. Virei santo. E
haja o que houver, direi sempre com a boca cheia, plageando Pablo Neruda
“confesso que vivi.”
Não sei como
descobriram, mas a revista Veja, através de seu editor regional, Edgar
Gantoira, me ofereceu um fusca caramelo zero quilômetro, um monte de dinheiro e
um fotógrafo, Roberto Duarte, para documentar a estadia de Janis em Salvador e
me vi diante do dilema em ser fiel ao pedido de Little Lyn e granjear a fama e
o dinheiro através do furo de reportagem. Eu traí Janis ao revelar ao fotógrafo
Roberto Duarte que no dia seguinte eu a levaria à feira de Água de Meninos, na
Cidade Baixa. Ele fez a foto com uma tele 125 mm e a Tribuna estampou em
manchete de meia página: "Janis Joplin na Bahia". Quando abri o
jornal pela manhã tive vontade de morrer. Chamei Janis e mostrei. Ela me odiou.
Chorei. Ela ficou puta. Passados uns minutos ela me beijou. Forget it, disse
ela, don’t worry. O resto jamais contarei. “ Summertime...”
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